Este diploma introduziu uma mudança significativa no modelo de governação do AL: a descentralização das competências para os municípios. A partir de então, cabe às autarquias decidir — de acordo com as especificidades do seu território — se, onde, como e em que condições é possível explorar unidades de Alojamento Local. Uma medida com lógica aparente, mas que carrega em si o potencial de reabrir o problema por outras vias.

Lisboa foi a primeira a agir, e talvez o exemplo mais emblemático desta nova fase. Em novembro de 2024, a autarquia suspendeu por seis meses (com possibilidade de renovação) a autorização de novos registos de AL em todas as freguesias com um rácio de estabelecimentos de AL igual ou superior a 2,5% do total de habitações permanentes. Esta medida foi acompanhada pela abertura de uma consulta pública para revisão do Regulamento Municipal do Alojamento Local, cujas propostas vão muito além de um simples controlo administrativo: propõem-se redesenhar profundamente o mapa de permissões e proibições na cidade.

Entre as medidas propostas está a criação de zonas de contenção absoluta e relativa, com critérios baseados na densidade de AL por freguesia. Nas zonas absolutas (≥5%), os novos registos seriam totalmente proibidos. Nas zonas relativas (2,5% a 5%), apenas seriam admitidos em situações excecionais. Adicionalmente, a Câmara Municipal de Lisboa propõe restringir a transmissibilidade dos registos em certas áreas, bem como impedir que os espaços licenciados para AL exerçam atividades complementares como comércio ou restauração.

Estas propostas levantam várias questões. A primeira e mais evidente é a de saber até que ponto o modelo descentralizado está a ser utilizado para reintroduzir, por via municipal, medidas que o legislador nacional optou por revogar. Ou seja, se a revogação do “Mais Habitação” visava repor estabilidade e confiança no setor, o exercício das novas competências locais pode, na prática, anular esse efeito, reinstalando uma sensação de insegurança jurídica.

A segunda questão prende-se com a fragmentação do ordenamento jurídico nacional. Se cada município aplicar critérios distintos — como rácios, usos complementares, limitações à transmissão de registos —, então operadores com imóveis em diferentes zonas do país enfrentarão um labirinto regulatório, com regras, prazos e limitações que variam de concelho para concelho. Essa multiplicidade de regimes locais, descoordenada e potencialmente volátil, representa um risco real para quem investe no setor. Mesmo os investidores institucionais, com maior capacidade de adaptação, terão dificuldade em gerir portefólios espalhados pelo território nacional. A descentralização, sem coordenação e princípios orientadores comuns, arrisca transformar-se numa nova fonte de instabilidade.

A ideia de adaptar a regulação à realidade local tem mérito. Ninguém contesta que Lisboa enfrenta pressões habitacionais diferentes de uma cidade do interior onde a densidade populacional e a procura turística são muito menores. Mas quando a autonomia municipal se transforma em restrição sistemática e não coordenada, os efeitos negativos são inevitáveis. O setor do AL é composto, em larga medida, por pequenos proprietários e investidores individuais, que não têm a estrutura ou os recursos para acompanhar, analisar e adaptar-se continuamente a este mosaico normativo em mutação constante.

É importante recordar que o AL foi, ao longo da última década, um dos motores da reabilitação urbana em Portugal. Muitos dos imóveis hoje devolutos ou degradados foram recuperados graças a este modelo de negócio. É certo que o crescimento acentuado da atividade levantou preocupações legítimas, nomeadamente em matéria de acesso à habitação para residentes e equilíbrio dos bairros. Mas essas preocupações devem ser tratadas com medidas proporcionais e previsíveis — não com ciclos de proibição e liberalização sucessivos, que minam a confiança dos investidores e descredibilizam as políticas públicas.

A descentralização é, por si só, uma oportunidade: permite adaptar a política local às características do território, dando voz aos municípios e promovendo soluções mais ajustadas. Contudo, descentralizar sem coordenar é transferir o problema sem o resolver. O que está hoje em causa é saber se Portugal está a caminhar para um regime de AL claro, estável e justo — ou se continuará a oscilar entre restrições excessivas e liberalizações curtas, ao sabor de pressões políticas ou perceções de curto prazo.

Para que a descentralização funcione, é necessário definir linhas orientadoras nacionais mínimas, que sirvam de base para a atuação municipal. Critérios objetivos sobre o que constitui pressão urbanística, instrumentos de monitorização eficazes e garantias mínimas para os operadores do setor são essenciais para evitar a arbitrariedade e garantir que o AL continue a ser uma peça importante da economia nacional.

Em suma, o Alojamento Local atravessa uma nova fase, marcada por maior autonomia local, mas também por renovadas incertezas. A descentralização, se não for acompanhada de princípios orientadores claros e coerência nacional, pode transformar-se num terreno fértil para decisões reativas e desarticuladas. Cabe agora ao legislador, aos municípios e aos operadores encontrar um ponto de equilíbrio que assegure previsibilidade, proteja o investimento e responda às reais necessidades das comunidades e do setor. O que está em causa não é apenas o futuro do AL — é a credibilidade da política pública de habitação e turismo em Portugal.

por Maria do Rosário Tavares de Pina, Associada da Área de Imobiliário da Sociedade de Advogados CCA.

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